NOTA DO BLOG: Reproduzimos em
nosso blog o artigo de Jacques Gruman por entender que se trata de uma análise
crítica dos descaminhos do futebol, sobretudo do futebol brasileiro. O mercado
tem essa propriedade, de transformar sonhos e criatividade em mercadoria.
Como se diz Mengo em islandês?
JACQUES GRUMAN*
Sei que nada será como está/
Amanhã ou depois de amanhã
(Milton Nascimento)
Amanhã ou depois de amanhã
(Milton Nascimento)
Sem demagogia.
Nunca estive na geral do Maracanã. Minha pátria era a arquibancada de cimento,
na diagonal atrás de uma das traves. Em dias de grandes clássicos, público
roçando 150, 160 mil pessoas, a turma da arquibancada se esbaldava jogando todo
tipo de tralha nos geraldinos. Sacos de xixi, restos de comida, garrafas,
pedaços de madeira e PVC, sólidos não identificados. Isso quando não desabava
um torcedor lá de cima (como nos trágicos acontecimentos da final do
Brasileirão de 92). Festa para uns, desaforo para outros, encontro marcado para
todos.
O Maracanã foi
planejado como uma espécie de panela da divisão de classes no Rio. Na geral,
ficava o povão, que ia ao estádio de trem e acabou criando uma cultura de quem
assiste um jogo de futebol em duas dimensões, pertinho dos técnicos e reservas.
Nestas circunstâncias, em total desconforto, surgiram personagens folclóricos,
que faziam dos 90 minutos um tempo teatral, de confronto imaginário com seu
próprio time (ah, como era imperdoável perder aquele gol ou não perceber que a
melhor jogada era outra). Olhando as imagens do excelente documentárioGeraldinos,
dirigido por Pedro Asbeg e Renato Martins, a gente tem a impressão de que era
na geral que a paixão pelo futebol se exibia em estado bruto. Hulks remendados,
Tarzans banguelas, uniformizados, Mister M, caixões improvisados, charutos. Um
desfile de carências e sonhos, transformados em potência por breves instantes.
O velho Maraca,
convenhamos, não tratava muito bem as torcidas. Conforto, para quê? Os
banheiros, só masoquistas de manual têm saudade deles. Quem tomava uns
birinaites ou exagerava nos chopes tinha que enfrentar um mar tempestuoso de
ureia para esvaziar a bexiga. Se o pastel de vento caísse mal, melhor seria
segurar a onda. O cheiro dos Walter Carlos intoxicaria estômagos de aço. Reza o
folclore que máscaras contra gases ficaram inutilizadas depois do primeiro
contato com aquela sucursal do esgoto. Apesar disso e de outros poréns, não
havia torcedor que fugisse dos sagrados encontros dominicais. Memoráveis,
vitais, avassaladores, fraternos.
Da estrutura
provecta só resta uma casca. Sucessivas reformas extinguiram a geral e deram um
ar de fraque ao que era estritamente popular. Faz lembrar as polêmicas em que
se meteram vários intelectuais na aurora do futebol no Brasil. Lima Barreto era
um beque de roça na batalha. Disparava botinadas naquele esporte que ele via
como Cavalo de Tróia na alma brasileira. Em 1907, decretava: “O futebol é coisa
inglesa que nos chegou pelos arrogantes e rubicundos caixeiros da Candelária e
arredores, nos quais teimamos em ver lordes e pares do Reino”. Não foi assim
que a banda tocou. Dos off sides, center halfs, players e quipers (goal
keepers), a gente inventou um estilo que driblou as origens. A
descaracterização do Maracanã não vem sozinha. É parte de um amplo movimento
global, atualiza, de certa forma, os temores do Lima e consolida outras
transformações.
Acabaram-se os
técnicos boleiros, que exalavam a mesma paixão de seus jogadores. Gentil
Cardoso, Yustrich e João Saldanha evocam uma espécie extinta. Hoje, temos os
“professores”, burocratas da bola, funcionários de aluguel. O mesmo se pode
dizer dos jogadores folclóricos, com forte vínculo com suas origens e suas
torcidas. A incubadora que gerou um Dario Peito de Aço (que, é bom não
esquecer, começou a jogar no Campo Grande) fechou as portas. Hoje, as
escalações estão cheias de nomes e sobrenomes, profusão de consoantes
duplicadas. Os apelidos de antigamente mostravam a raiz peladeira, de pés
no barro, e o prazer
lúdico do esporte. Afonsinho, que desafiou a ditadura dos
“professores” e cartolas, gostava de sentir o cheiro da grama molhada nos jogos
em dias de chuva. Alguém consegue imaginar que, digamos, Neymar esteja ligado
nessas abstrações? O jogo passou a ser meramente utilitário, quero dizer, meio
de faturar. Cada jogador carrega na camisa uma etiqueta invisível, com o preço
do seu passe. Viraram reclames ambulantes. Quem é que pode se apaixonar por uma
mercadoria? Também sumiram os filósofos do futebol. Como Neném Prancha. Nada
disso é casual. Tudo faz parte de um sistema que tem, no núcleo, a substituição
de uma criação popular pela lógica do mercado. Futebol vende, e estamos
conversados. Acabou-se a inocência, da mesma forma que acabou o cuidado
artesanal nos primórdios da Revolução Industrial, atropelado pela produção
padronizada e em larga escala. Os campos de várzea habitam o território da
memória afetiva. A realidade são as “arenas” privatizadas e os craques fashion.
Um flash
back, volátil como todo flash back, aconteceu há poucos dias.
Numa dessas jornadas em que o futebol ainda é fértil, um time supostamente
inferior derrotou o favorito. A seleção islandesa bateu os lordes do Lima
Barreto. O que me impressionou não foi a qualidade técnica dos lourinhos. Terminada
a partida, os jogadores correram em direção à torcida (5% da população
islandesa estavam no estádio!) e praticamente se fundiram com os torcedores. Em
determinado momento, o capitão do time se transformou em regente de orquestra.
Com gestos firmes, pediu silêncio à torcida – que se calou. Em seguida,
começou, junto com os demais jogadores e num ritmo perfeito, a coreografar o
grito de guerra, que exigia uma coordenação difícil de alcançar naquela
montanha de gente. Tudo acabou num carnaval, time e torcida em harmonia. E
felizes. Dizem que foi esse tipo de proximidade que lançou as bases da enorme
popularidade do Flamengo. Nos primeiros tempos, quando o remo ainda era o carro
chefe, o time de futebol ia a pé para o campo de treino, confraternizando com os
eventuais passantes. Aquela disponibilidade e a simpatia dos jogadores fizeram
o resto.
Numa mesa de
debates na Flip, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel comentava a relação
entre cérebro e consciência. “Olhar para aquela matéria e entender que são moléculas,
mas que, por causa da maneira muito particular em que se organizam, se
transformam num ser que pensa, que tem opiniões sobre o Universo, isso é poesia
suprema”, disse. Pois a poesia que a molecada injetou no jogo dos lordes está
perdendo de goleada para o business. No documentário sobre a geral, o
jornalista Lúcio de Castro, um dos raros que respeito na área esportiva, chorou
ao lembrar em que se transformou o Maracanã. Otimista, enxugou as lágrimas e
disse acreditar que o povo ainda recuperará sua casa de futebol. Será que a
poesia voltará um dia ao Maracanã, onde hoje vagam, abúlicos, os fantasmas
órfãos dos geraldinos e arquibaldos das antigas?
* JACQUES
GRUMAN é Engenheiro químico, ativista da esquerda judaica laica e
internacionalista. Escreve crônicas semanais, sempre às segundas-feiras.
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